Os Mortos de Sobrecasaca

"Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis, alto de muitos metros e velho de infinitos minutos, em que todos se debruçavam na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca. Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos. Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava, que rebentava daquelas páginas."

Carlos Drummond de Andrade, Os Mortos de Sobrecasaca (Sentimento do mundo, 1940)

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Aqui quem manda são os BARÕES!

E EIS QUE ELE CHEGOU!

Ele?... O BARÃO, um mito vindo do passado...

Ou serão vários barões vindos do passado? Confuso? Também eu... Mas só até perceber a verdadeira história de Júlio José Fernandes Basto, o BARÃO DE BASTO!

Júlio José Fernandes Basto, Barão de Basto
Porto, Séc. XX, anos 20.
(fotografia gentilmente cedida pela família)
Precisamos recuar muito no tempo para perceber a verdadeira razão ou confusão que tem permanecido na terra onde o barão nasceu, Cabeceiras de Basto!

Contemporâneo do meu trisavô Joaquim José, o "Manco", que o conheceu certamente e que possivelmente até poderá ter privado com ele, o barão está envolto num bruma misteriosa, com muitas estórias à mistura e pitadas de excentricidade, um verdadeiro mito! Mas será mesmo verdade?

Vamos recuar até 20 de janeiro de 1798 e 25 de julho de 1799, altura em que nasceram dois irmãos, Alexandre José e João António Fernandes, respetivamente pai e tio do barão, no pequeno lugar de Leiradas, em Cabeceiras de Basto. Era uma família relativamente humilde. Os pais, Manuel José Fernandes e Joanna Maria Leite eram pequenos proprietários daquele lugar, com uma vida modesta que não preenchia os sonhos de fortuna daqueles dois irmãos. E foi então, pela mão de algum padrinho ou familiar que partiram para o Brasil.

Regressaram com uma fortuna colossal! Sobre a sua origem pouco se sabe, apenas especulação... Possivelmente herdaram-na de algum familiar que lhes deu a mão no então Brasil colonial!

Portugal daquele tempo era um país devastado, primeiro pelas invasões das tropas de Napoleão Bonaparte e depois e pela guerra civil que opôs dois irmãos na luta pelo poder, D. Miguel e D. Pedro... É neste contexto, já com o Regime Liberal instalado que o ministro Joaquim António de Aguiar, conhecido como o "Mata-Frades" assina o decreto de extinção das ordens religiosas e nacionalização de todos os seus bens, a 28 de maio de 1834. Os ricos irmãos Fernandes, já com o "Basto", nome da sua terra, acrescentado ao apelido, viram na venda dos bens dos frades beneditinos do Mosteiro de São Miguel de Refojos, em Cabeceiras de Basto, a oportunidade para aplicarem parte da sua fortuna vinda do outro lado do Atlântico. E é assim que em 1839 compram, em hasta pública, todas as propriedades beneditinas da terra que cresceu à volta daquele mosteiro de origem medieval, ainda anterior à fundação de Portugal.

Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto - Casa do Mosteiro
Do lado esquerdo, na ala convertida na Casa dos irmãos Fernandes Basto
ainda é visível o já desaparecido original revestimento de azulejos
azuis e brancos dispostos em riscas verticais,
à semelhança com a Casa do Barão, do outro lado da praça.
Postal ilustrado de José F. Barroso
E aquele edifício monástico passou assim a ser a residência daqueles dois irmãos, símbolos de uma classe burguesa em ascensão!

Os irmãos Fernandes Basto passaram a ser, talvez a família mais poderosa em Cabeceiras de Basto e porventura uma das influentes de toda a região de Basto. Assim se explica que tenha nascido aqui o mito de uma família poderosa, num contexto de uma terra rural, pobre e isolada, como era Cabeceiras na altura, e os Fernandes Basto vistos como aqueles que eram tão ricos, que tudo podiam e se davam ao luxo de tudo terem!

Gravura do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto -
 Vista da praça fronteira, mostrando bem o caráter rural
e pitoresco da vila de Cabeceiras de Basto.
In: Revista "O Ocidente" nº 75 de 21 de Janeiro de 1881
Alexandre José Fernandes Basto casa em 1835 com Constança Álvares Pereira de Sousa, de quem tem uma vasta prole de 10 filhos, um deles Júlio, o futuro barão. No mosteiro já não se ouviam as orações dos frades beneditinos, mas sim o barulho de crianças, muitas crianças, uma grande família de 5 irmãs, Maria Carolina, Emília, Leonor, Justina Amélia e Gertrudes e 5 irmãos, Bernardino, Cândido, Alexandre, Lino e Júlio. Todos eles cresceram no seio de uma poderosa família e alguns casaram com membros de famílias de grandes Casas da região. Permanece na memória familiar alguns episódios caricatos do cortejamento das filhas do poderoso Alexandre José, nomeadamente o pretendente de Justina Amélia, que se insinuava, ostentando um rico traje com relógio de bolso à altura, apesar de na verdade não ser assim tão valioso, sob as sacadas do mosteiro, onde Justina e as irmãs espreitavam aquele ousado "dandy"!

Vista da Casa do Barão, do lado esquerdo, com o mosteiro ao fundo.
Postal do início no séc. XX
João António  não casou nem teve descendência, vindo a morrer a 24 de agosto de 1873 e quase um ano depois a 2 de agosto de 1874 morre o irmão Alexandre José, então Comendador da Ordem da Conceição. Viria a herdar a Casa do Mosteiro o homónimo filho Alexandre Augusto e Júlio José o edifício do antigo Tribunal do Couto de Refojos de Basto, que o transformou num original palacete muito ao gosto da "Casa de Brasileiro", que ficou conhecido como a "Casa do Barão".

Júlio José, nascido em Cabeceiras de Basto, em 1850, foi talvez o mais empreendedor dos irmãos, não perdendo a sua ligação ao Brasil. Os seus negócios além-mar fizeram que a sua herança crescesse, crescesse, crescesse... Cada vez mais! Outra fortuna colossal!

A Casa do Barão
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
Júlio José casa com Amélia Eunice Gonçalves Ferreira, irmã da mulher do seu irmão Alexandre Augusto, de quem tem 9 filhos, Frederico, Beatriz, José, Constança, Júlio, António, Jaime, outro Jaime que morreu com 1 ano de idade, e Fernando.

A sua vasta fortuna e generosos donativos valeram-lhe o titulo tão ambicionado para ter apenas aquilo que ainda não tinha, um lugar na aristocracia! E é assim que nasce este BARÃO, titulo dado pelo rei D. Luís I a 8 de agosto de 1889 (Registo Geral de Mercês de D. Luís I, liv. 56, f. 62v - Arquivo Nacional da Torre do Tombo).

Cenas de uma caçada - Júlio José Fernandes Basto, Barão de Basto empunhando a espingarda.
Séc. XIX, final.
Fotografia gentilmente cedida pelo Dr. José Queirós

Pormenor da varanda da Casa do Barão, muito ao gosto da
"Casa de Brasileiro", com inspiração na arquitetura
brasileira oitocentista.
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
(Fotografia da autoria de Joaquim Castro Gonçalves)
E é assim que nasce também a confusão dos barões... Apesar do título ter sido único e não ter passado às gerações vindouras, o que é certo é que para as pessoas da terra, com voraz apetite por alcunhas, a toda aquela poderosa família, para além do diminutivo "inho" colocado no nome de cada um, era acrescentado o titulo de barão ou baronesa! E multiplicaram-se assim os barões...

Festas, muitas festas, faustosas festas... A moda dos saraus... Tudo isto se passava entre o palacete do barão e o mosteiro do seu irmão! Despiques à parte, tudo isto devia ser muito estranho e até excêntrico para o povo de Cabeceiras de Basto habituado à modéstia e austeridade da vida rural!

Pormenor das telhas pintadas do beiral, muito ao gosto das
"Casas de Brasileiro", na ala esquerda do Mosteiro de
São Miguel de Refojos. Terão sido colocadas,
muito provavelmente, com as obras de remodelação
da fachada, no último quartel do séc. XIX.
Fonte: SIPA, www.monumentos.pt
(Fotografia da autoria de Joaquim Castro Gonçalves)
Mas para minha desilusão, apesar do luxo e do fausto, nada de estranho ou caricato se conta de Júlio José Fernandes Basto. Consta apenas que seria um cioso capitalista que nunca perdeu dinheiro, pelo contrário multiplicava-se nas suas mãos... Como se de Midas se tratasse!

O único e verdadeiro Barão de Basto morreu em 1929. Mas, o mito não! Continuou.. E como o dinheiro era muito, esta suposta "excentricidade" passou para as gerações seguintes.

Muitas histórias ainda se contam, com muito "açúcar" e algum "picante" sobre familiares do barão, os outros "barões"!

Um dos que contribuiu para o mito foi o sobrinho do barão, Nuno Fernandes Basto, também ele popularmente chamado de "barão". Era filho de Alexandre Augusto, e casado com Constança, sua prima direita, filha do barão e adivinhe-se, chamada popularmente de "baronesa". Nuno "Barão" consta que era deveras estranho, pelo menos para meio pequeno de Cabeceiras! Era notívago, dormia de dia e saía unicamente à noite, como se um vampiro se tratasse, pelo menos era o que contava o meu avô, feitor de sua casa, a Casa do Mosteiro.

Outro que também contribuiu, e muito, para alimentar o mito, foi um filho do barão... O António Fernandes Basto, conhecido popularmente, como também não podia deixar de ser, por "barão"! Figura caricata que desde a sua juventude pautava pela irreverência... Histórias há sobre a sua divertida vida de estudante universitário em Coimbra! Uma delas sobre um barril de vinho que o barão mandou para o seu filho... Rastilho para que se juntasse em Coimbra uns poucos de estudantes num "brainstorming", em vez de irem aos exames, a fim de engendrarem um mecanismo para conduzir o vinho do barão através de uma mangueira a cada uma das suas camas... Ou até a história do noivado de António com Maria da Conceição Novais de Ferreira de Melo, da Casa de Bouças, desfeito pelo pai da noiva, em pleno jantar de noivado, quando António resolveu "aliviar a bexiga" no salão do futuro sogro! Consta que sempre foi apaixonado por Maria da Conceição, mas só casou com ela muito mais tarde, quando o sogro morreu e com ele a proibição daquela união tão "imprópria"!

Capa do livro "O Barão" de Branquinho da Fonseca
sob o pseudónimo António Madeira, 1942.
António "Barão" chegou até a ser a inspiração para a personagem principal da famosa novela "O Barão" do escritor Branquinho da Fonseca. Esta obra-prima escrita em 1942, sob o pseudónimo de António Madeira, que trata do conflito entre dois tempos e duas maneiras de ver o mundo, terá tido origem nas visitas feitas pelo escritor a Cabeceiras de Basto, onde tinha amigos e onde terá também conhecido este "barão" que o  convidou para as suas grandes jantaradas regadas com muito vinho e fantasia!

O "barão" de Branquinho da Fonseca é uma personagem intrigante, um verdadeiro ditador que tudo pode, aterroriza e... Manda!

Esta obra terá também inspirado em 1943, Valerie Lewton, uma produtora americana, casada com um ator português, que vê no "O Barão" potencial para realizar um filme de terror, construindo a personagem à semelhança do famoso Conde Drácula. O filme começou a ser rodado em segredo, numa fábrica do Barreiro. A PIDE terá descoberto, e vendo na caricatura do barão algumas semelhanças com um certo ditador, mandou destruir o filme, repatriar a equipa americana e prender os atores portugueses no Tarrafal, onde vieram a morrer torturados!

Mas, a história não morre aqui e eis que em 2005 são descobertas duas bobines do filme original! Estas preciosidades vão parar às mãos do realizador Edgar Pêra, que se lança na aventura de fazer um remake desta curiosa obra. E eis que o BARÃO renasce!

Tudo isto, e mais alguma coisa, terá contribuído para um mito, uma lenda, uma história em que entram várias personagens, em que todas têm em comum o poder, a riqueza e a influência, terem vivido numa sociedade fechada e rural, que via na diferença a excentricidade e independentemente do significado de um titulo nobiliárquico, BARÃO era aquele que MANDAVA!


O filme "O Barão", de 2011, inspirado na obra homónima de Branquinho da Fonseca, do realizador Edgar Pêra, com os atores Nuno Melo, Marcos Barbosa e Leonor Keil.
  Trailler do filme (Rotterdam Film Festival Trailler) 
Fonte: www.youtube.com, Edgar Pêra

Excerto do filme 
Fonte: www.youtube.com, Edgar Pêra

Agradecimentos especiais:
Ao realizador Edgar Pêra pela autorização do uso do trailler do filme "O Barão" associado ao blogue O Castro "Manco";
A Augusto João Teixeira, da Casa do Tempo - Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto; 
Ao professor Tomás;
Ao engenheiro Basto, bisneto do Barão de Basto;
Ao Dr. José Queirós.

sábado, 7 de novembro de 2015

A Protetora

A tia D. Ana, já muito velhinha, acompanhada da sobrinha Mariquinhas,
do filho, o arquiteto Baltazar de Castro e da nora Mariana Amélia.
Lugar de Baloutas, Painzela (Cabeceiras de Basto), Anos 40.
Escondida no fundo, bem lá no fundo da memória... Esquecida e desconhecida por muitas pessoas da família, Ana da Silva Ramalho, ou melhor, a tia D. Ana como ficou conhecida era daquelas pessoas que deviam ser sempre recordadas...

E porquê? A tia D. Ana não teve uma vida de glória nem de grandes feitos! Mas, é recordada pelas poucas pessoas mais velhas da família que ainda se lembram, com um enorme carinho e ternura... Tudo isto devido a uma qualidade excepcional... A sua Bondade!

Vamos então recuar no tempo... E contar a história ao contrário!

Baltazar e a sua mãe D. Ana. Baloutas,
Cabeceiras de Basto, anos 40.
Lugar de Baloutas, em Cabeceiras de Basto, anos 40, altura em que foi tirada esta fotografia, pouco tempo antes do seu falecimento... D. Ana já estava muito debilitada devido ao avanço da idade, contudo ainda arranjava forças para se levantar quando chegava o seu querido filho, o arquiteto Baltazar de Castro, da longínqua capital Lisboa. Baltazar visitava-a frequentemente, apesar da distância, pois a sua mãe já não tinha mais nenhum filho perto dela e o seu marido havia "partido" já há muitos anos.

A tia D. Ana esteve sempre presente quando a família precisou dela, sempre para dar a sua ajuda, sempre para dar alguma palavra de conforto... Agora era ela que precisava de carinho, de palavras amigas, e tinha-as... Apesar dos filhos não estarem perto dela, estava o resto da família, como os seus muitos sobrinhos, uma delas, era a minha tia Cândida, que ainda se lembra como ela gostava de carinhos, de festas, beijinhos, que a penteassem e mexessem nos seus longos e finos cabelos brancos sentada no pátio da sua casa junto aos canteiros de flores...

A sua casa já não tinha o reboliço de outras eras, quando os filhos e os sobrinhos da Casa do "Manco" entravam a correr por ali fora, mas não estava vazia, D. Ana tinha a companhia da sua fiel criada e seu filho, afilhado do arquiteto Baltazar.

A tia D. Ana e o marido, o tio José, com os filhos e neto. Séc. XX, década de 10.
Os seus filhos mais velhos, Rozendo, Celestino e Olaia haviam partido no vapor para o Brasil, tal como tinha acontecido com muitos dos seus familiares, apenas ficaram dois filhos, um dependente de sua mãe porque possuía uma deficiência e Baltazar, que cedo saiu de Cabeceiras de Basto, partindo para o Porto para estudar. Os seus pais passavam longas temporadas na sua casa do Porto para acompanhar o filho, logicamente, e foi precisamente nessa altura, por volta de 1905 ou 1906 que receberam na sua casa a sua sobrinha, a minha bisavó Julinha, que o meu trisavô "Manco" havia desterrado para local suficientemente longínquo da pequena aldeia de Baloutas, em Cabeceiras de Basto, para esconder uma gravidez indesejada e afastar da influência daquele que veio a ser o meu bisavô, Adriano Augusto José Machado. A tia D. Ana sempre protegeu a minha bisavó, achava que ela devia escolher quem ela quisesse para casar, ao contrário dos cânones da época, que se limitavam a casamentos combinados, principalmente em famílias abastadas, como era o caso daquela família burguesa.

O meu tio-trisavô José com trinta e poucos anos.
Fotografia tirada possivelmente no Rio de Janeiro, Brasil,
 onde foi negociante. É a fotografia mais antiga conhecida
de um membro da família Castro, de Painzela, ainda da
década de 70 do séc. XIX. 187(?).
D. Ana não se preocupava com essas convenções da sociedade, pois a sua origem humilde e a sua condição inicial de mãe solteira assim a havia ensinado!

Filha de Joaquim da Silva e Joaquina Ramalho, D. Ana nasceu pobre em meados do séc. XIX, em Painzela, Cabeceiras de Basto. Como era normal em famílias de baixas condições sociais, teve de sair de casa e ir trabalhar para ganhar o sustento, primeiro como padeira e depois criada de servir na casa que havia de ser a sua.

D. Ana casou-se com José Joaquim da Silva Castro, irmão mais velho de Joaquim José da Silva Castro, o "Manco" e trouxe o que tinha de melhor para aquela família burguesa "estrangulada" por convenções sociais, a sua bondade, simplicidade e despreocupação em relação às regras sociais!

A virtuosa tia D. Ana, que nunca perdeu o pronome "Dona", mesmo quando entrou para a família Castro, foi um pilar e uma lufada de ar fresco que marcou muitas pessoas no seu tempo.

As virtudes deveriam ser sempre o mote para nos lembrarmos de alguém, alguém comum como tantas outras, alguém que foi mãe, tia, avó e que viveu sempre para a família dando-lhe o que ela tinha de melhor, a sua bondade e a sua proteção...

A tia D. Ana, ainda jovem, tirada quando nasceu o seu filho Baltazar de Castro, em 1891.

sábado, 17 de outubro de 2015

Quando era pequenino queria ser...

Baltazar da Silva Castro 
Já se perguntou alguma vez porque é que gosta disto ou daquilo? Porque é que escolheu seguir determinado caminho na sua vida?

-"O que é que queres ser?", perguntavam-me em pequeno, e eu respondia: -"Arquiteto!" Mas saber desenhar não me bastava, também gostava de História, fascinavam-me os edifícios antigos... Enveredei pela última opção, o Património!

Desde há muito tempo que tenho muitas perguntas na minha cabeça para as quais ainda não tinha obtido resposta! Os gostos, as preferências, as aptidões serão genéticas, ou meramente resultantes das nossas vivências?

As minhas dúvidas dissiparam-se um pouco quando descobri este homem... 

Baltazar na igreja do Mosteiro de Paço de Sousa, em Penafiel,
durante as obras de restauro dirigidas por ele.
Fonte: www.monumentos.pt
Tudo começou há uns bons anos atrás quando me deparei com uma assinatura de um "B" muito bem desenhado num documento do arquivo da instituição para a qual eu tinha começado a trabalhar, a antiga Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Esse "B" era a inicial de Baltazar da Silva Castro, "desconhecido" por mim até aquele momento, e sobrinho do meu trisavô Joaquim José, conhecido como o "Manco".

Mas, vamos recuar ainda mais no tempo...

Corria o ano de 1891, quando a 1 de maio, no lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto, nasceu Baltazar, filho dos meus tios-trisavós José Joaquim da Silva Castro e Ana da Silva Ramalho.
Baltazar da Silva Castro. Séc. XX, anos 10.

Como filho mais novo, os seus pais quiseram lhe dar a melhor das educações. O seu pai, pessoa culta e viajada, negociante no Rio de Janeiro, deve ter sido certamente uma boa influência na sua escolha profissional. O seu gosto pelas Belas Artes levou-o a ingressar em 1914 no curso de Arquitetura.

Mariana Amélia de Abreu e Baltazar da Silva Castro. Séc. XX, anos 20.
Quatro anos mais tarde concluía o curso na Escola de Belas Artes do Porto. É por esta altura que conhece a mulher da sua vida, Mariana Amélia de Abreu.

A 23 de Maio de 1918 casam no Porto. Mariana irá acompanhá-lo sempre, até ao final dos seus dias.

Mas é ainda durante os estudos que começa a traçar o seu caminho pelo mundo das obras públicas, que o irá conduzir ao seu "cavalo de batalha", o restauro do Património Arquitetónico português.

Em 1927 Baltazar de Castro, nome que adotou, é nomeado arquiteto da 3.ª Repartição de Monumentos e Palácios, Secção Norte, da Direção-Geral de Belas Artes. Mas é em 1929 que é transferido para a Direção dos Monumentos do Norte, pertencente à recém-criada Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais - DGEMN, ocupando 1 ano depois o cargo de diretor dos Monumentos do Norte.

Baltazar da Silva Castro no Funchal, Madeira.
Fonte: www.monumentos.pt
É partir daí que inicia o seu contributo para o restauro dos nossos "tesouros nacionais". Igrejas, mosteiros, capelas, palácios, castelos... Quase todos os restauros tiveram a mão de Baltazar de Castro, principalmente os de origem medieval e quinhentista, seguindo a política de então, em que o Estado Novo privilegiava as "glórias" do passado de Portugal, ou seja, a época áurea do período da Fundação e dos Descobrimentos.

O aspeto destes "tesouros" do Património português, tal como hoje os conhecemos, deve-se em grande parte aos restauros feitos desde os anos 20 a 50, dirigidos por Baltazar de Castro, que levou à "recriação" do aspeto que se pensaria original e primitivo, politica em voga na época do Estado Novo, que foi beber aos ensinamentos revivalistas do arquiteto francês Viollet-le-Duc.

A área geográfica destes monumentos abrange quase todo o território nacional, com especial destaque para o Norte de Portugal Continental, a Madeira e os antigos territórios do Ultramar. São muitos os exemplos de restauros dirigidos por ele, nomeadamente: a Sé de Braga, Vila Real, Viseu e Sé Velha de Coimbra, Paço dos Duques e Castelo de Guimarães, Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, também em Guimarães, Domus Municipalis e Castelo de Bragança, Igreja de Cête, Mosteiro de Travanca, Biblioteca da Universidade de Coimbra, Mosteiro da Batalha... e muitos mais!

Mariana e Baltazar em Pangim, Índia. Anos 50.
Foi também autor de projetos, principalmente em parceria com Rogério de Azevedo, destacando-se a Garagem do Jornal "O Comércio do Porto" e a Faculdade de Medicina do Porto. Projetou também várias escolas primárias, nomeadamente a da sua terra natal, Painzela, em Cabeceiras de Basto.

Em 1948 é nomeado arquiteto diretor da Direção dos Serviços de Monumentos Nacionais da DGEMN e arquiteto inspetor do Conselho das Obras Públicas.

Apaixonado pela arquitetura portuguesa Além-Mar partiu em missão durante vários meses para Moçambique, Angola e a então Índia Portuguesa.

Em 1927 foi condecorado com o grau de Oficial de Santiago da Espada, pelos serviços prestados no restauro dos monumentos nacionais. Em 1942 é condecorado pelo Presidente da República, Comendador da mesma ordem.
Colar de Oficial da Ordem de Santiago
da Espada atribuído a 17 de dezembro
de 1927.



Pormenor do diploma de Oficial de Santiago
 da Espada com a assinatura do Presidente
 da República de então, Óscar Carmona.

Mas, Baltazar não dedicou a sua vida só ao trabalho, apesar da sua frenética atividade, esteve sempre ao lado da sua família, dos seus três filhos, Celestino, Baltazar e Mariano, do seu "filho do coração" António, e dos seus muitos netos.

Os filhos, Baltazar, Mariano e Celestino,
este último também arquiteto.
Os meus familiares mais velhos, em Cabeceiras de Basto, ainda se lembram do barulho do seu carro a chegar, da agitação e alegria dos primos mais pequenos que se gladiavam para carregarem as malas, quando vinha visitar a sua mãe, a tia D. Ana.
Baltazar e sua mãe. Painzela, Cabeceiras de Basto, anos 40.

O Comendador Baltazar da Silva Castro, figura cimeira da história do restauro do Património Arquitetónico português, morreu a 10 de outubro de 1967, na sua quinta, em Oliveira, Póvoa de Lanhoso.

Pois é, afinal os nossos gostos e aptidões podem ter raízes no Passado! Mera coincidência, talvez sim, ou talvez não! Eu prefiro acreditar que nós não somos só aquilo que a sociedade nos torna, mas também aquilo que carregamos nos genes, o que nos "corre nas veias". 

Por isso, digo, é fundamental conhecer e descobrir o Passado, para compreendermos o nosso Presente...

Baltazar com a sua mulher, filho, noras, netos e o seu cão,
na sua quinta em Oliveira, Póvoa de Lanhoso. Anos 60.

Links: Biografia Baltazar da Silva Castro

sábado, 3 de outubro de 2015

O relógio da saudade


Tic-tac, tic-tac, tic-tac... É engraçado como prevalecem as memórias, por cheiros, imagens e neste caso pelo som, o som do bater do relógio da casa da minha avó.

Tenho muitas recordações dela, obviamente, mas o relógio não me sai da cabeça! Aquele bater ritmado e certinho do relógio de sala, e principalmente a música das horas, quartos e meias horas com um possante "Avé-Maria"!

Este "tic-tac" é o mote para falar daquilo que me apetece realmente lembrar, a minha AVÓ, que fazia hoje 102 anos, se fosse viva!

A minha avó Glória com 24 anos de idade.
Maria da Glória da Silva Castro nasceu a 3 de outubro de 1913, em "vésperas" da 1ª Grande Guerra, no pequeno e isolado lugar de Baloutas, em Painzela, Cabeceiras de Basto. Os seus pais, Julinha da Silva Castro e Adriano José Machado, eram o casal cujo amor foi proibido e censurado pelo meu trisavô Joaquim José, o "Manco".

Ao contrário de sua mãe, a minha avó já não nasceu no seio de uma família abastada,  não teve direito a ser "inha" ou Glórinha, pois as vicissitudes da vida e o orgulho do seu avô "Manco" levaram a que a família de Julinha e Adriano tivesse de lutar para vencer e "sobreviver" naquela época tão difícil marcada por duas Guerras Mundiais e pelo "orgulhosamente sós" do Estado Novo.

Numa casa cheia de gente, com mais 8 irmãos, numa coisa a sua infância deve ter sido parecida com a de sua mãe Julinha, foi feliz e livre! Livre para correr pelos campos e ruas da aldeia com os irmãos e com os primos da frente, que moravam na rica Casa do Manco.

Mas, naquela época difícil, cedo teve de sair de casa e ir trabalhar, primeiro na vizinha Casa da Breia e depois na Casa do Mosteiro, para a família do famoso Barão de Basto, Júlio José Fernandes Basto.

O meu avô, Avelino Gonçalves. Anos 40.
A Casa do Mosteiro ficava no edifício mais imponente e emblemático da vila de Cabeceiras de Basto, o antigo e extinto Mosteiro beneditino de São Miguel de Refojos.

Entrou para o mosteiro como cozinheira da família do Barão. E foi lá que o destino a fez cruzar-se com o amor da sua vida, o meu avô!

Avelino Gonçalves era o seu nome, nascido a 13 de agosto, também de 1913, filho de Albino Gonçalves e Laurinda Borges, de uma família com longa tradição na arte da carpintaria e marcenaria. Avelino era natural da vizinha localidade de Atei, em Mondim de Basto e tinha ido trabalhar para o sobrinho do Barão não como mestre carpinteiro mas como feitor de sua Casa.

O meu avô era o braço direito da estranha figura do Nuno Fernandes Basto, que também era conhecido como "Barão", apesar do titulado ser o seu tio! - "Vivia de noite, pouco parava em casa e estava sempre a viajar", dizia o meu avô, que o tinha de acompanhar para todo o lado. Quando estava no mosteiro arranjava sempre desculpas para ir à cozinha espreitar aquela que não lhe saía da cabeça, a sua Glória.

Despesa do casamento dos meus avós apontada
no livro de contas do meu avô Avelino.
Um dia, Avelino encheu-se de coragem e pediu Glória em casamento. Ela, rendida de amores por ele, aceitou!

O casamento foi "abençoado" pelo "Barão" que impressionado pela robustez das formas da minha avó, murmurou ao ouvido do seu fiel feitor, com um ar muito machista - "Bem escolhida Avelino! Uma mulher para ser boa, o homem deve dar dois tombos em cima dela e não cair abaixo...!"

A 19 de Março de 1938, Glória e Avelino casaram na igreja do Mosteiro de São Miguel de Refojos de Basto.

Casamento feito, nova vida... Avelino e Glória despediram-se do excêntrico "Barão" e foram morar para Atei. Compraram a casa que havia sido do avô materno de Avelino, no lugar de Fontelas e dedicaram-se a novas profissões. A minha avó como dona de casa e mãe de família e o meu avô à arte da carpintaria, que tinha atravessado gerações e gerações de Gonçalves...

Fotografia tirada no dia de casamento dos meus avós. Ao centro,  os
meus bisavós Adriano e Julinha, ladeados pela esquerda pela minha
tia-avó Amélia e pela direita, a minha avó Glória. O meu avô não
quis aparecer na fotografia do seu casamento porque estava doente!
Cabeceiras de Basto, 19 de Março de 1938.

Vieram os filhos, 6 ao todo... O meu tio António, a tia Laurinda, que morreu em criança, o meu pai Joaquim, a tia Fátima, o tio Albino e a tia Amélia.
A minha avó com a minha tia Fátima ao colo, o  meu
pai, do lado esquerdo, e pelo meu tio António, do lado direito.
1950.

Todos nasceram ao som do "tic-tac" do relógio, não o dos toques "Avé-Maria" das minhas recordações, mas de outro muito mais antigo, herança dos meus tios-trisavós, Bento e Carolina, da Casa do Paço, em Atei.

É engraçado como simples objetos que atravessam gerações e gerações nos marcam! Ao meu pai, o antigo relógio do Paço, que o viu nascer e crescer, no grande quarto chamado de "casa de lá", e a mim o relógio da sala, que "cantava" fortemente o "Avé-Maria" ao meio dia em ponto nos saudosos almoços de domingo.


Os meus avós, pai e tios. Anos 50.
Os meus avós e tios. Início dos anos 60.

Os meus avós. Porto, 10 de junho de 1989.
No dia 5 de Março de 1992 morre o meu avô Avelino. A minha avó vê-se sozinha, perdida, sem o amor da sua vida, que a acompanhou durante 54 anos de casamento. São poucos os casamentos que resistem tanto tempo... Glória nunca mais foi a mesma! Guardo até esta altura as melhores recordações dela, o seu sorriso, as suas palavras sábias...

A minha avó, à semelhança da sua mãe Julinha, foi-se esquecendo lentamente de tudo, do marido, dos filhos, dos netos, das boas lembranças e recordações guardadas ao longo da vida. 

Na madrugada chuvosa de 7 de dezembro de 2000, enquanto dormia, a minha avó Glória morreu.

Na sua casa já não se ouvem os "tic-tacs", apenas um insuportável SILÊNCIO...! Ficam as memórias sonoras dos relógios que marcaram várias gerações, eu, o meu pai, os meus tios e quem sabe a minha avó...

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Quem com coxo anda aprende a mancar - A moda das viagens no raiar do século passado

Passeio a Vila do Conde, 1907. Em primeiro plano, a tia D. Ana,
atrás, ao centro, o meu trisavô Joaquim José, o "Manco"
e o seu irmão o tio José Joaquim, e nos extremos, os filhos da tia D. Ana.
Viagens no início do século XX... É esta a temática destas fotografias de família que eu encontrei perdidas "no fundo do baú". Quando as vi foi como voltar a dar vida a memórias há muito perdidas no tempo.

Ninguém da família, nem mesmo os mais velhos, se lembram de alguma vez ouvirem falar em viagens, passeios, no puro lazer e recreio dos seus vetustos pais e avós. Talvez antigamente não se falasse do passado, pelos menos do quotidiano, do que era considerado mais corriqueiro, não sei!

Estas fotografias ainda hoje são uma surpresa quando as mostro aos familiares mais velhos, que estranhamente lhe é difícil entender esta realidade da "arte de passear e não fazer nada" associada aos seus avós. Talvez seja porque estas pessoas, ao contrários destes seus antepassados nascidos no séc. XIX, viveram na sua juventude outra realidade, mais fechada, mais austera, própria dos 40 anos de "isolamento" que caracterizou o Estado Novo, acentuada pelo "ruralismo" do local onde viviam.

No precioso "baú" encontrei algumas fotografias destes esquecidos passeios do meu trisavô Joaquim José, conhecido como o "Manco"! Destacam-se estas de uma viagem a Vila do Conde em 1907, possivelmente por ocasião de alguma festa ou romaria.

Passeio a Vila do Conde, 1907. Do lado esquerdo, a tia D. Ana, o meu trisavô Joaquim José, o "Manco",
 um filho da tia D. Ana, os tios Francisco José (?) e José Joaquim, irmãos do "Manco" e outro filho da tia D. Ana.

Passeio a Vila do Conde, 1907. Junto à Igreja Matriz encontram-se,
do lado esquerdo, um filho da tia D. Ana, o tio José Joaquim,
outro filho da tia D. Ana, o meu trisavô Joaquim José e a tia D. Ana.
Mas, será que eram frequentes estas viagens? Infelizmente não tenho a certeza se o eram para o "Manco" e a sua família, pois as provas fotográficas que nos chegaram são manifestamente insuficientes. O que é certo é que estes passeios, estas viagens de recreio eram uma moda em ascensão na Europa, e como não podia deixar de ser, em Portugal.

O meu trisavô "Manco", pessoa letrada e certamente culta, cedo tomou contato com a realidade cosmopolita da cidade do Rio de Janeiro, ao emigrar no vapor para o Brasil. Lá fez fortuna, e como qualquer outro "novo rico" ou recém chegado à classe burguesa e capitalista, procurou certamente imitar tudo o que era moda ou ter o melhor, o mais caro, o mais extravagante... Enfim, nada que um "torna-viagem" ou "brasileiro" que se prezasse não fizesse para se mostrar à sociedade!

Viajar foi possivelmente uma dessas suas "extravagâncias", pelo menos assim seria vista pelos seus conterrâneos em Cabeceiras de Basto. Como prova desta sua mobilidade lúdica eis que nos aparece esta fotografia de uma viagem à Alemanha!

Berlim, 5 de Julho de 1912.
Marcados ao centro, do lado direito, o meu trisavô Joaquim José e a sua filha Balbininha, e do lado esquerdo, o seu filho Chiquinho.

Esta fotografia com um "estranho" transporte público, possivelmente o autocarro da altura, foi impressa como postal e mandada para a família, em Cabeceiras de Basto, no ano de 1912, pouco tempo depois do trágico acidente com o lendário navio Titanic. Infelizmente só se consegue ler no verso a data e "Chegamos ontem a Berlim...". Nada sei sobre esta viagem! Seria uma viagem pela Europa ou só pela Alemanha?

Estas viagens seriam frequentes na época, pelo menos para quem as podia pagar. Faziam-se normalmente nos navios a vapor ou no mais promissor transporte público deste meados do séc. XIX, o caminho-de-ferro!

Anúncios sobre vilas e cidades, termas, praias, touradas, exposições, romarias... em Portugal e no estrangeiro, tudo valia para promover o "Turismo", novo conceito vindo de Inglaterra no final do séc. XIX, através das viagens de comboio.

Havia já na altura uns livrinhos de bolso, verdadeiros guias turísticos, com todas as informações que o viajante precisava, nomeadamente locais históricos, hotéis, transportes, preços... Será que o "Manco" teria um? A sua filha Balbininha devia ter, pelo menos é o parece revelar esta fantástica fotografia, ao olharmos com mais atenção para a sua mão.

É estranho vermos estas imagens do passado, principalmente esta de 1912, tirada antes das duas grandes guerras mundiais, quase em "vésperas" do início do primeiro grande conflito militar, em 1914, onde tudo já desapareceu, as pessoas, o transporte, e até possivelmente o edifício!

Remexer em "baús" tem destas coisas, podemos encontrar verdadeiras janelas para o passado. Estas que aqui vemos não existiriam certamente se não fossem as modas dos retratos fotográficos, das viagens e passeios... enfim, das "extravagâncias" do "Manco".

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Um Amor de Perdição

Julinha em criança, 1893.
Qualquer semelhança com alguns episódios do enredo do romance de Camilo Castelo Branco é mera coincidência. Mas o que é certo é que a vida da minha bisavô Julinha poderia ter sido uma inspiração para o Camilo, o Eça de Queirós ou qualquer outro escritor Romântico do séc. XIX.

Foi no longínquo ano de 1886, na fria madrugada do dia 26 de janeiro, que nasceu Júlia da Silva Castro, no pequeno lugar de Baloutas, da freguesia de Painzela, em Cabeceiras de Basto. Julinha, como ficou conhecida, pois era habitual no Minho usar o diminutivo "inha" para as meninas ricas, nasceu no seio de uma família rural abastada, cuja fortuna teria vindo principalmente da herança em propriedades de sua mãe Joaquina e dos negócios no Brasil, de seu pai Joaquim José, conhecido como "O Manco".

Como qualquer menina prendada no final do séc. XIX no "Portugal rural" foi educada segundo os valores cristãos e familiares, ensinada a cuidar da casa, do marido e filhos, a ser submissa e a não ter grandes opiniões nem vontades, tal como era comum naquele mundo dominado pela vontade masculina.

No entanto, apesar de tantas grilhetas sociais, talvez devido à origem "menos rica" da família de seu pai, Julinha cresceu "livre", livre para correr descalça com os outros miúdos da aldeia, para correr pelos campos no meios dos criados e jornaleiros atarefados com as pesadas tarefas agrícolas, livre para brincar com os seus primos e irmãos...

As vindimas em Baloutas, 1893. Fotografia tirada na casa de seu tio paterno José. Em primeira fila, ao centro, Julinha com a sua avó paterna Teresa de Jesus, sua irmã Aninhas, sua mãe Joaquina e seu avô paterno João Baptista da Silva. Atrás seus tios paternos, Antónia (?), José, D. Ana, primos e vindimadores.

No início do séc. XX, possivelmente ainda em 1902, a felicidade própria da infância é roubada pela morte precoce de sua mãe Joaquina, deixando 8 filhos menores. Julinha teria apenas 16, a irmã mais velha, Aninhas, com 19 e os restantes irmãos ainda crianças. A minha bisavó teve assim de "crescer" mais depressa e como era das irmãs mais velhas, quase adulta, teria de ajudar a tomar conta dos seus irmãos, apesar do acompanhamento de suas tias D. Ana e Antónia.

No meio do reboliço das tarefas domésticas de uma menina de família que teria de tomar conta de seus irmãos, não havendo talvez  "ninguém" para tomar conta de si e como é próprio da flor da idade, o seu olhar cruzou-se com um jovem criado de seu pai, jornaleiro de profissão, se é que se pode chamar "profissão" a uma vida tão incerta de duro trabalho  à "jorna" ou ao dia na lavoura!

Adriano Augusto José Machado era o nome desta sua súbita e grande paixão, que viria a tornar-se o meu bisavô. Nascido a 1 de junho de 1885, na freguesia de Refojos, no centro da vila de Cabeceiras de Basto, no seio de uma família muito humilde, era filho de Bernardo José Machado e Maria Inácia Alves. A sua família tinha uma alcunha, digamos, curiosa, eram conhecidos como os "cag..." acabado em "ões", devido a uma história passada com o pai ou com o avô de Adriano. Este seu antepassado, por ocasião das lavragens, e como jornaleiro, teria ficado hospedado numa casa que lhe era estranha. Durante a noite arrebatado por uma súbita dor de barriga e não podendo ir à latrina no exterior da casa, porque teria de passar pelos quartos intercomunicantes onde estavam a dormir os donos da casa, acordando-os, desenrascou-se colocando o dito cujo fora da janela do seu quarto. Por baixo estava o arado que iria ser usado no dia seguinte! De manhã quando os outros trabalhadores o foram usar... Já se advinha a reação e o porquê da malfadada alcunha!

O secreto namoro de Julinha com Adriano depressa foi descoberto pelo "Manco". E, claro está, proibiu terminantemente esta paixão de sua filha, menina rica e prendada com o criado pobre e ainda por cima com uma alcunha tão imprópria para ser apresentada na sociedade cabeceirense.

Mas, como o fruto proibido é sempre o mais apetecido, Julinha não cumpriu e engravidou...

Coberto de vergonha e como era hábito na altura fazer tudo "por debaixo dos panos", e antes que a sua barriga começasse a crescer e a notar-se, o "Manco" mandou a sua filha para a casa de seu irmão José Joaquim. A casa ficava no Porto, longe o suficiente para esconder a gravidez dos olhares reprovadores da sociedade, e tinha sido alugada pelos tios de Julinha, José Joaquim e D. Ana para que o filho Baltazar, futuro arquiteto, pudesse estudar.

Adriano descobriu a morada da tal casa no Porto e meteu os pés ao caminho para ir buscar a sua amada. - "Julinha, Julinha..." gritava ele por debaixo da sacada da casa quando a encontrou! A boa e benevolente tia D. Ana foi rapidamente à janela, e antes que os vizinhos dessem conta de tamanha "ribaldaria", acalmou os ânimos e pediu a Adriano que voltasse a Cabeceiras e resolvesse a situação quando Julinha regressasse, para que D. Ana não tivesse de prestar contas ao enfurecido cunhado "Manco". E assim foi...

Escondida dos olhares reprovadores, meses depois, Julinha deu à luz um menino! Mas, mal o viu! O "Manco" havia dado ordens para que a criança fosse retirada à mãe e entregue a uma ama, que o criaria em absoluto sigilo.

Tolhida de medo de seu pai e das línguas viperinas da sociedade, Julinha regressou sozinha, na esperança da sua vida poder resolver-se e quem sabe poder acompanhar o filho, nem que fosse em segredo.

Contudo, ao chegar a Baloutas, tudo veio-lhe à memória e a sua paixão foi maior do que o medo de reprovação de seu pai. Julinha havia-se encontrado com o seu amado e antigo criado de lavoura e feito juras de amor eterno.

Quanto fez 21 anos e atingiu a maioridade, já com tudo pensado e combinado com Adriano, Julinha arranjou maneira de fugir...
Adriano e Julinha, 1957.
(fotografia oferecida por eles a todos os seus filhos). 

Escondendo a garrafa do vinho que devia estar na mesa do jantar, Julinha, muito solicita, disse ao pai de cara aborrecida que procurava na mesa e no aparador da sala a desejada garrafa - "Pai, vou ali à adega buscar o vinho e já venho!". Foram as últimas palavras que o "Manco" ouviu de sua boca. Julinha foi e não voltou. Ou pelo menos não nos dias seguintes!

No dia 24 de novembro de 1907, Julinha e Adriano casaram na igreja do Mosteiro de São Miguel de Refojos, em Cabeceiras de Basto.

O "Manco" enfurecido com a pesada notícia mandou buscar o seu neto a casa da secreta ama e entregou-o nos braços da sua filha recém casada e inexperiente mãe. Julinha havia sido, a partir daquele momento, renegada pelo seu desgostoso pai!
Julinha e Adriano com as netas Adelaide e Conceição.

Os meus bisavós, ironicamente, foram morar para a casa em frente à Casa do Manco. "Casa", não era o termo mais correto para aquelas quatro paredes, antigas dependências agrícolas da Casa do Manco, que Julinha havia herdado nas partilhas de sua mãe. Foi adaptada a casa! Fizeram-se os quartos com divisões de tabique, soalho corrido, latrina no exterior, cozinha com chão em terra, forno e... atrás dele o lagar e a adega! Tudo numa construção só! A adega e o lagar eram precisos para as pipas de vinho americano que era colhido na propriedade, também herdada de sua mãe, de seu nome "Veiga". A partir daquele momento e para sempre a minha bisavó ao nome "inha" foi acrescentado "da Veiga"... "Julinha da Veiga".

Adriano e Julinha, anos 60.
O filho, fruto da relação proibida, morreu ainda bebé, ninguém sabe de quê, talvez levado por uma das inúmeras doenças infantis que assolavam o início do século. Mas vieram mais filhos, todos criados naquela pequena casa, com vista para a rica Casa do Manco. Julinha teve mais 9, tal como sua mãe: a tia América, a mais velha, seguida da minha avó Glória, a tia Maria,  o tio Agostinho, a tia Joaquina, a tia Amélia, o tio Joaquim, a tia Cândida e o tio José.
A minha avó,  Maria da Glória da Silva Castro, 1950. 

Apesar do "Manco" nunca ter aceitado o casamento da sua filha e o elo entre eles ter-se tornado demasiado frio e distante, os netos não foram incluídos nessa gélida e conturbada relação. Ainda hoje se fala das brincadeiras entre o "Manco" e as netas mais velhas. Segundo consta, a tia América, a minha avó Glória e as primas gostavam de apanhá-lo distraído, a dormitar e esconder-lhe a bengala...

Julinha e Adriano ficaram juntos até que a morte os separasse. Acho que a paixão da minha bisavó pelo meu bisavô era tão grande que lhe deu força para superar todas as adversidades que atravessou...

Nos últimos anos de vida a loucura e a demência tomaram conta dos pensamentos da minha bisavó. Delírios, visões, vozes imaginárias, tudo isto a atormentava! - "Não vás lá dentro! Estão lá pessoas que me querem matar..." dizia ela aos netos que vinham a casa visitá-la.

No dia 22 de fevereiro de 1966, pelas 16 horas, Julinha de 80 anos morre no lugar da Cruz do Muro, na casa de seu filho.

No velório de Julinha alguém disse a Adriano - "Ela sofreu tanto, era tão boa, uma verdadeira santa... merece o Céu!", ao que Adriano respondeu - "Se o merece, deve-o a mim, que fui a causa do seu Purgatório e a Perdição da sua vida...".


Os meus tios-avós:

A tia América.
A tia Maria.
A tia Joaquina.



O tio Joaquim.
A tia Amélia.
A tia Cândida .
Ver:Jornal Ecos de Basto
O tio José.